segunda-feira, junho 20, 2005

O Grande Irmão

A memória, é realmente curta. Lá diz o velho ditado “Morreu o rei! Viva o rei!”. No dia de Stº António, desapareceu Àlvaro Cunhal, e dias antes Vasco Gonçalves. Pessoas de inquestionável relevância política, há precisamente 30 anos atrás. Do Vasco Gonçalves já quase ninguém se lembrava, do Àlvaro Cunhal a ideia do eterno líder do PCP. Quem é que se lembra da passagem fugaz, mas nem por isso inofensiva, destas duas personagens, pelo governo de Portugal, então uma recém-nascida democracia? Quem se lembra da maneira como chegaram ao dito governo? Quem se lembra do 11 de Março de 1975? Quem se lembra das nacionalizações à bruta? Quem se lembra dos saneamentos à bruta? Quem se lembra da caça às bruxas dos "inimigos do proletariado" (leia-se, toda a gente que não era militante do PCP)? Quem se lembra dos desastrosos processos de descolonização, entregando tendenciosamente o poder aos movimentos de libertação marxistas-leninistas, sem recurso a um periodo de transição, e a eleições livres? Quem se lembra que em consequência disso resultaram as guerras civis de Angola, Moçambique e Timor-Leste, esta última finalizando com a ocupação indonésia e com aquilo que já se sabe? Quem se lembra das centenas de milhares de portugueses que tiveram que fugir dessas ditas guerras civis, quase só com a roupa que levavam, e ao regressar a Portugal, ainda tiveram que aguentar a humilhante e vergonhosa alcunha de “retornados”? Quem se lembra de todos os mortos e feridos dessas guerras civis (maioritariamente mulheres e crianças)? Quem se lembra da ruinosa política económica que esse governo levou a cabo, deixando o país à beira da bancarrota? Quem se lembra de que esse governo quase nos levou à guerra civil? Alguém se lembra de alguma destas coisas, porventura, antes de fazerem os discursos de circunstância a exaltar o carácter e valor dos falecidos? Não nego, nem esqueço o papel primordial que o PCP desempenhou no tempo da ditadura, combatendo-a feroz e heroicamente, mas esse papel não lhe deu o direito de fazerem o que fizeram estas duas personagens durante o chamado "verão quente" de 1975. Mais duas personagens a quem não serão imputados crimes de lesa-pátria, nem crimes contra a humanidade.

3 comentários:

Fernando disse...

Eh pá! Quem te ouça falar até parece que foste um fervoroso seguidor do Sá Carneiro desde miúdo. Olha, eu lembro-me bem dessa época (vantagens de ser mais cota)mas, mesmo assim, acho que faz parte da nossa História - se soubesses a quantidade de gente que o Marquês de Pombal matou, e sem ele, às tantas, ainda estavamos a decidir que arquitecto reconstruiria Lisboa... enfim História é História e quando cá vieres vai ao forte de Peniche que pode ser que te dê saudades da música do Zeca Afonso. Não estou mais de esquerda, não, nunca fui dessa esquerda, estou é mais histórico - para o melhor e para o pior. Abraço grande

Fernando

SDF disse...

Execelente post e excelente comentário ao post.

É importante lembrar que todos somos humanos, que existe sempre "um outro lado" em tudo, que nada é completamente bom ou completamente mau - a dualidade faz parte do ser, é inerente a tudo o que existe, é o que garante o equilíbrio, embora nós, com as cabecinhas formatadas ao pensamento ocidental, tenhamos dificuldade em compreende-lo, em aceitá-lo, e tenhamos a irritante tendência de querer sempre catalogar as pessoas, as atitudes e as situações como boas ou más, forçando-nos ao esquecimento do inerente outro lado que as torna um todo, sem sequer nos apercebermos de como amputamos assim a realidade.

Por isso foi bom lembrar o outro lado das consequências das atitudes de Cunhal e Gonçalves. Como foi bom ler o sensato comentário do Fernando. Tal como ele, também já estou mais histórica, já aceito "os outros lados de tudo" com mais serenidade. Começo a aceitar que mais vale um mau passo que a ausência de qualquer passo. A humanidade aprende por tentativa-erro. Os erros não são maus nem bons. São caminhos de descoberta. Só é preciso não deixar escapar as lições.

A Burra Nas Couves disse...

Cunhal e Gonçalves tinham todo o direito, como todo o mundo, de tentar e errar, de dar os passos, em vez de ficar parados, de errar como toda a gente (já diziam os romanos:errare humanum est). O único pequeno detalhe é que nessas tentativas/passos/erros, as consequências repercutiram nas vidas de milhões de pessoas. Sempre que errei fui responsável pelos meus erros e assumi as consequências, e cresci e aprendi. Mas não arrastei milhões de pessoas comigo, talvez por isso não tenha honras de estado no meu funeral. Mas não exijo a ninguém, aquilo que não exija de mim mesmo.