segunda-feira, outubro 17, 2005

A noite

Rezam as crónicas familiares, que quando eu era bebé, a minha avó paterna me ofereceu à lua, em ritual, para que eu não fosse vadio. Suspeito que os esforços da pobre mulher foram contraproducentes. Tenho vivido a maior parte do tempo da minha vida de noite. Posso pôr todas as desculpas possíveis para que isso acontecesse: a vida profissional, os sonos trocados, etc. O que é certo é que levo mais de um ano, tentando levar a vida de uma pessoa normal, e levanto-me cada dia às 7 da manhã, mas mesmo assim, a noite vem-me chamar à cama a meio do meu sono profundo, e arrasta-me para dentro dela, como se lhe pertencesse. Alguns dirão “sofres de insónias!”, não, não sofro de insónias, porque quando me é permitido durmo muito bem..............durante o dia! Conheço pessoas que levam anos a dormir 2 e 3 horas, e essas, sim, sofrem de insónias, mas eu não me aguentaria nesse ritmo. Por vezes, deito-me antes de jantar, ou faço uma sesta, quando posso. Mas mesmo quando estou morto de sono às 11 da noite, invariavelmente acordo a meio da noite, sem pesadelos, sem ruídos, apenas acordo.

Também se poderia dizer que prefiro a noite ao dia. Não tenho a certeza, pois gosto muito da clara frescura duma manhã de sol, de sair à rua e gozar da exuberância das cores e dos aromas que o dia traz. Das tardes de verão que sempre me remontam à minha infância (não sei porquê).
Por outro lado a noite tem o recolhimento e a intimidade, que o dia não tem. É certo que prefiro trabalhar de noite do que de dia. Concentro-me muito mais, e estou comigo mesmo.

Escrevo esta posta porque mais uma vez, e inexplicavelmente, acordei às 4 da manhã, depois de me ter deitado antes da meia-noite, e ter adormecido. Tenho um primo que é psicólogo, e que uma vez saiu num programa de televisão a explicar toda a história dos ciclos do sono. Bastante interessante, mas já não me lembro.

A noite tem a sua própria magia, algo de clandestino. Como quando comecei a trabalhar naquilo que viria a ser a minha futura profissão. Comecei na noite de Lisboa, que então era muito diferente do que é hoje. Era como um clube selecto a que muito poucos tinham acesso, e pouco a pouco, esse clube me foi abrindo as portas de par em par, até fazer-me membro honorário. Dei-me conta disso, quando há um par de anos me encontrei com um fotógrafo que conheço desde esses tempos, para lhe comprar algumas fotos recentes que me tinha feito. E quando lhe perguntei se ele tinha alguma foto desses tempos, e lhe comecei a referir lugares, personagens e datas, ele disse-me: “Mas isso foi no princípio de tudo! E tu estavas lá!”. Pois é, dei-me conta nesse momento que se tinham passado 20 anos, e que eu tinha feito parte dos primórdios da noite lisboeta. Quando o Bairro Alto era um bairro mal-afamado, onde só paravam putas e jornalistas (muitas das redacções residiam lá). Lembro-me da decadência, das putas, dos edifícios, e dalguns dos jornalistas, e outras personangens militantes da via alcoólica para o socialismo. Lembro-me da inauguração do Frágil (para verem o quão antigo sou), das noites passadas no Ocarina por vezes até entrarem as mulheres da limpeza. Lembro-me também das mudanças que me afastaram para outros lugares do Bairro Alto, ou mesmo para outros da cidade. Nessa conversa, com o fotógrafo, tive então consciência de que tinha feito parte de algo, sem o saber, e sem querer: os primórdios da noite de Lisboa! O mais engraçado é que eu não sou de Lisboa, nem nunca morei em Lisboa. Mas isso pouco interessa à noite, que ainda aqui em Barcelona, continua a reclamar a minha presença, nem que seja a ler um livro, a ouvir música com os auscultadores, ou a ver um filme. A noite sabe que o meu corpo já há muito tempo não me puxa para a borga, e que o “bater as capelinhas” foi coisa do qual me cansei há muitos, muitos anos. Então dedico-me a velar o sono dos meus, e a encontrar-me comigo no escuro..........................e conversar.

Não sei se algum dia a noite me vai deixar dormir em paz, mas entretanto vou-me questionando: hábito ou doença? Maldição ou benção? Pouco me interessa. Como li há pouco na Corveia: “Se entendes, as coisas são como são, se não entendes, as coisas são como são!”

4 comentários:

SDF disse...

Bem... a meio deste texgto até tive de parar e levantar-me, aproveitando para ir buscar um café, pois a coisa estava a ficar arrepiante... vá lá que o exorcismo do intervalo para café deve ter sortido efeito, pois a segunda parte já se tornou "normal", ou seja, o autor tornou-se autor e a leitora apenas leitora.

Mas na primeira metade... vai lá, vai! A identificação foi tal que até parecia que que tinhas escrito o teu texto pela minha mão e pela minha cabeça e impressões, sensações, etc.

SPOOKY MESMO!!!

Abraços noctívagos com raça de morcego!

Mariana disse...

AH, MORCEGO! ;)

Beijos ao luar!

Cravo a Canela disse...

Pois eu tenho muita pena de não sofrer de insónias. Pagava para dormir só duas ou três horas por dia. Porquê? Porque isso me proporcionaria a oportunidade de viver nesse silêncio da noite de que falas, que é o período em que nascem as coisas mais criativas e loucas e onde faço coisas de que sou incapaz com o movimento do dia (ou seja, dos outros), e ao mesmo tempo aproveitar a luz do dia que me permite ser eficiente e social.
Na verdade há duas coisas que eu adoro fazer, mas que daria tudo para detestar: dormir e comer doces!

Aquele Abraço,

Rogério Charraz

SDF disse...

Com o João, não sei. mas eu não tenho insónias. Se me deitar, durmo. Apenas tenho uma estranha tendência para me manter acordada de noite - precisamente porque é nessa altura que me sinto mais criativa e produtiva - e dormir de manhã.

Embora tal como o João, quando estou acordada de manhã, também gosto muito - o dia tem uma luz e uma Alma diferente de manhã cedo.

Olha, já estou como tu, Rogério: Bom mesmo era não ter de dormir! (e não comer doces também dava jeito, confesso!)