terça-feira, maio 31, 2005

Defeito ou feitio?

“Veja-se nesta descrição a loucura com que se carregou o galeão Santiago, depois apresado pelos holandeses:
Trazia este galeão, só no porão, quatro mil quintais de pi­menta; e no corpo da nau e debaixo da ponte e em cima dela, na tolda, no chapitéu, sobre o batel, no sítio do cabrestante e no convés eram tantos os caixões de fazenda e fardos ao cava­lete, que não cabia uma pessoa nele. E até por fora do costado, pelas postiças e mesas de guarnição, vinham fardos, e camaro­tes formados, como todas estas naus costumam, de tal maneira que se não podiam nele marear as velas, e dezoito dias se não pôde andar com o cabrestante. E sobretudo se embarcaram ne­le perto de trezentas almas, entre nautas, oficiais e alguns sol­dados ordinários e escravos e como trinta pessoas fidalgas e nobres [...]■?
O que fez exclamar aos holandeses, depois de tomado o navio:
Dizei, gente portuguesa, que nação haverá no mundo tão bar­bara e cobiçosa que cometa passar o cabo de Boa Esperança na forma que todos passais, metidos no profundo mar com carga, pondo as vidas a tão provável risco de as perder, só por cobiça; e por isso não é maravilha que percais tantas naus e tantas vidas”
in História Trágico-Marítima de Bernardo Gomes de Brito
(relatos do sec. XVI, publicados no sec. XVIII)

“Estamos perdidos há muito tempo...O país perdeu a inteligência e a consciência moral.Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada.Os caracteres corrompidos.A prática da vida tem por única direcção a conveniência.Não há princípio que não seja desmentido.Não há instituição que não seja escarnecida.Ninguém se respeita.Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos.Ninguém crê na honestidade dos homens públicos.Alguns agiotas felizes exploram.A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia.O povo está na miséria.Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente.O Estado é considerado na sua ação fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo.A certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências.Diz-se por toda a parte, o país está perdido!Algum opositor do atual governo? Não!” Eça de Queirós escreveu isto em 1871.


“...mas esse tempo que há-de vir não se espera como a noite espera o dia
nasce da força que transpira de braços e pernas em harmonia
já basta tanta desgraça que a gente tem no peito a cair
não é do povo nem da raça, mas do modo como vês o porvir
que atrás dos tempos vêm tempos e outros tempos hão-de vir”
Fausto Bordalo Dias, in Atrás dos Tempos


P.S.- O texto do Eça foi-me gentilmente enviado por email, pelo amigo Francisco Naia, a quem mando um abraço.