A Maria era uma mulher forte. Escondia as suas amarguras com uma alegria contagiante, apesar de ter sido muito maltratada toda a vida, segundo o que me contou. Da última vez, foi caso de polícia, depois de ter sido maltratada física e psicologicamente, e violada repetidas vezes pelo “companheiro”, que chegou a apontar-lhe um arma à cabeça.
Como valente que era a Maria, conseguiu escapar-se do agressor e chamar a polícia, que tomou conta da ocorrência. A Maria também apresentou queixa no Ministério Público, e tentou pressionar o máximo que pôde, para que lhe dessem solução ao seu caso. A única coisa que conseguiu foi um aparelho da Cruz Vermelha Portuguesa, o chamado “botão de pânico”.
Supostamente, se o agressor se aproximasse dela, ela teria que premir o botão, e imediatamente as autoridades apareciam onde ela estivesse. Na prática, a Maria teve que sair da casa que era sua, e alugar uma outra casa, para reduzir as possibilidades do agressor a encontrar, e sentir-se um pouco mais em segurança. E o “botão de pânico” obrigava-a a ligar cada vez que saía de casa, a dizer para onde ia, e com quem ia, e com quem ia estar, e ao chegar ao destino teria que voltar a ligar, a dizer que já tinha chegado, e que estava tudo bem. Nem que fosse para ir ao café da esquina beber um café, ou ao supermercado.
Muitas vezes ela dizia “o outro é que cometeu o crime, mas eu é que vivo numa prisão, enquanto ele faz a vidinha dele, tranquilamente”.
Passei os últimos dois meses de vida da Maria, com ela. Testemunhei em primeira pessoa muita coisa. Inclusivamente os momentos em que a Maria baixava a guarda e se deixava abater por todo o peso que supunha o fardo que carregava. Do seu quotidiano sem respostas por parte do estado, da sua vontade de justiça que tardava, da sua falta de proteção e privacidade.
A Maria consultou uma psiquiatra do SNS em busca de alguma ajuda, que sem mais nada lhe receitou um fármaco, que entre outras coisas, dizia na bula de contra-indicações, que podia acentuar tendências suicidas. E mandou-a voltar passado umas semanas, para ver como se sentia.
Na altura, eu morava na serra da Lousã, e quando a Maria estava lá em casa, era outra pessoa. Passávamos o dia a rir, e a fazer coisas, a cantar. Quando voltávamos a Lisboa, parecia que um manto de obscuridade se estendia sobre o seu ser. Ficava desconfiada, continuamente a ver pessoas que a olhavam, que não estavam a olhar, e a ver o agressor em cada esquina.
Algumas vezes, quando estávamos em Lisboa, a Maria dizia-me para eu a deixar, para seguir a minha vida porque ela estava demasiado partida por dentro, para me fazer feliz. Eu perguntava-lhe que ela me explicara como é que eu poderia deixá-la, e ser feliz.
Sugeri-lhe que viesse para minha casa, não para vivermos juntos, mas para passar uma temporada indefinida, para se restabelecer, até estar forte o suficiente para afrontar a dureza da vida em Lisboa. Ela concordou, e estabelecemos um calendário, para ela poder resolver os seus assuntos em Lisboa. Entretanto ela começou a arrumar as suas coisas, como quem arruma a sua vida.
A Maria trabalhava para a Operação Nariz Vermelho, fazendo rir crianças em estado de vulnerabilidade internadas em hospitais, inclusive no Instituto Português de Oncologia. E eu sabia que ela fazia das tripas coração, porque há que ser uma pessoa muito extraordinária para estar partida por dentro como ela me dizia que estava, e difundir a alegria ao seu redor como ela o fazia. Quem a conheceu sabe bem do que falo. E eu via como ela vinha de rastos do IPO.
Fixou-se a mudança a seguir ao seu último trabalho com a ONV, que seria numa quinta-feira. No fim de semana anterior à mudança, tive um pequeno trabalho que me forçou a ir à Lousã, e aproveitámos a viagem para levar algumas das suas coisas. Ao chegar lá, tirei fotos às suas coisas, para que elas visse lá em casa, e disse-lhe que faltavam apenas alguns dias, para ela poder respirar melhor.
Lembro-me de que da última vez que falámos, no domingo pela hora de almoço, ela perguntar-me se poderia plantar coisas, ao que eu lhe disse que claro que sim, que encontraríamos um cantinho para ela plantar as coisas dela.
Essa mesma noite regressei a Lisboa para encontrar o corpo sem vida da Maria. O peso foi demasiado para ela, e decidiu ela mesma pôr termo ao seu sofrimento. Faz hoje exactamente 4 anos. Tantos como os que me levou para falar publicamente sobre este assunto.
E falo sobre este assunto, porque vivi de perto, e em primeira pessoa, as consequências da violência de género. E porque não quero que seja um assunto do qual se pare de falar e de testemunhar. Porque quero que se fale, que se debata, que se denuncie, que se exponha até o estado e as autoridades competentes tomarem consciência das consequências da sua inércia e inconsequência. Porque é um assunto que afecta toda a gente, e por conseguinte diz respeito a toda a gente. E por dizer respeito a toda a gente, toda a gente tem que trabalhar no sentido de pôr termo à violência de género.
Quem não respeita os outros, sejam de que género fôr, não se respeita a si mesmo. E por não se respeitar assim mesmo, precisa de desprezar e humilhar outros, para se sentir momentaneamente melhor consigo mesmo.
E hoje quero relembrar a Maria, que talvez já se tenham esquecido dela. Eu não posso.
Não sei como agradecer à minha presente companheira, que fez o favor de me mostrar que eu estava errado, ao pensar que nunca poderia voltar a viver ou amar.