sexta-feira, setembro 30, 2005

Três anos

E passaram 3 anos. Na verdade não passaram assim tão rápido. Como dizia um slogan publicitário de uma marca de relógios "O tempo é o que se faz com ele". Passou-se muita coisa durante estes 3 anos. Desde a incerteza da aventura inicial, até à quase estabilidade dos dias de hoje, muita àgua passou debaixo da ponte. Desde o minúsculo quarto alugado em casa da Laia Cagigal, minha colega na escola Passatge, até ao minúsculo apartamento onde vivo.
Foi uma decisão difícil, de consequências dificeis. Mas ao mesmo tempo, quase uma decisão para a qual a própria vida me empurrou, e para a qual eu sabia que não havia volta atrás. E neste preciso momento, a volta atrás é algo perfeitamente inconcebível. E noto isso quando alguém me pergunta inusitadamente se eu neste momento voltaria a viver em Portugal. A minha reacção primeira é de surpresa total, porque é uma opção que me passa tanto pela cabeça como ir para padre, e como consequência a minha resposta imediata é negativa. E sai-me sem qualquer tipo de hesitação. Quer dizer isso que renego a 38 anos da minha vida? Não, em absoluto! Continuo a ser tão português como antes. Sou, e serei portador de uma herança cultural, e de uma experiência de vida que nenhuma condição apagará. Sou o que sou e quem sou, porque vivi o que vivi, onde vivi e com quem vivi. Renegar isso, seria renegar-me a mim mesmo, e tenho por experiência pessoal, que a maior certeza que existe na vida, além da morte, é que até que a morte chegue, terei que viver comigo mesmo, e é de toda a conveniência que essa convivência seja o mais pacífica possível. Não sei se me faço entender bem.
Mas foram 3 anos em que não tive que lutar diariamente pelo respeito que me é devido por ser pessoa, e muito raramente fui alvo do mau-humor dum qualquer imbecil que acordou mal-disposto, seja na rua, nas instituições ou no trabalho. Não tive que andar atrás de ninguém quase implorando que me paguem o meu trabalho nos prazos acordados (por vezes foram meses, mas já o sabia à partida, e pagaram-me quando eu o esperava). Em que vi o meu trabalho devidamente valorizado e respeitado por colegas e clientes, tendo estes sempre uma palavra amável, que nos ajuda sempre a acreditar cada vez mais em nós próprios, e a aligeirar a carga que o trabalho em si possa constituir. Foram 3 anos em que por me esforçar por ajudar-me, muita gente e instituições me ajudaram, em vez de me dificultarem o caminho. Foram 3 anos, ao fim dos quais posso dizer que me sinto uma melhor pessoa, muito longe da imagem dum tipo azedo, tristonho e desiludido que se punha diante dos olhos cada vez que pensava no meu futuro, quando vivia em Portugal. Ao mesmo tempo dá-me uma certa raiva, porque podia ter e ser isto tudo sem ter que sair do meu próprio país, bastava que o povo ao qual pertenço fosse um pouco mais inteligente emocionalmente. Desgraçadamente esse povo escolhe o caminho do "chico-espertismo" com todas as consequências que daí advêm, e que cada vez mais saltam à vista de quem queira ou não queira ver. Existe a firme crença que é mais fácil despejar a merda do nosso quintal para o quintal do vizinho, em vez de a limpar. Existe a firme crença que "trabalhar é bom para o preto", e que é mais fixe ser "muita esperto", enganar os outros, fugir aos impostos, e viver de esquemas que sempre tramam alguém. Um gajo tem que se safar (consultar anterior posta). Os efeitos desta "vocação" nacional tornaram-se palpáveis com os sucessivos anos de incêndios. Assim como a terra, os recursos sociais queimam-se, e tornam-se àridos e só alguns poucos beneficiaram alarvemente deles. E quando uma "mama" seca, inventa-se outra, até que todas sequem. E não é de agora, é de sempre. Só nos orgulhamos de ser portugueses através dos Carlos Lopes, das Rosas Motas, dos Campeonatos Europeus de Futebol, das Expos 98, e outros que tais, que nos puxam a lagriminha ao olho, porque parece sermos incapazes de nos orgulharmos individualmente de nós próprios. Falo, obviamente de uma maneira geral. Indentificamo-nos com os herois nacionais que nos apaziguam a consciência, e nos fazem sentir um pouco menos miseráveis.
Lá estou eu de novo no choradinho de sempre! Desculpem-me os leitores, mas é que ainda não consegui superar uma série de coisas, como ainda não consegui explicar aqui a ninguém esta relação amor-ódio com o meu país. E também me mete raiva não conseguir resolver isso, porque é muito difícil demarcar a fronteira onde acaba o amor e começa o ódio. Pelo menos não me é indiferente, e isso já é algo que me descansa. Como dizia o professor Agostinho da Silva, existem os povos "ou" e os povos "e", a maior parte dos povos são "isto ou aquilo", mas há povos como o português que são "isto e aquilo e várias coisas ao mesmo tempo". Provavelmente sofro eu também da tendência geral do ser humano de querer explicar o inexplicável, para me sentir mais seguro, para ter algo onde me agarrar.
Bom, mas seguindo com o dizia antes, uma das conquistas mais importantes, ou talvez a mais importante, foi o facto de eu ter conseguido reunir as condições para ter o meu filho Sérgio a viver aqui comigo, e ver que ele se sente contente e feliz com isso, apesar das muitas saudades que tem da mãe, do irmão, da família e dos amigos.
Passei estes 3 anos numa cidade maravilhosa, que dá gosto sair à rua e admirar os seus edifícios. Dá gosto passear pelo bairro, mesmo sendo o mais degradado da cidade, e entrar num café paquistanês, comprar um pão galego, beber um café italiano e comer uns pastelinhos marroquinos, tudo no mesmo sítio. Passear no centro da cidade ao domingo e ver as ruas cheias de gente, e pensar que a baixa de Lisboa nesse preciso momento estará deserta, apenas com alguns turistas para apreciar a sua glória, enquanto a típica família lisboeta se passeia pelo Colombo, ou pelo Vasco da Gama. Vivi 3 anos sem saber o que é o sigilo bancário, e que se eu (ou qualquer outro cidadão) se escusa a pagar uma multa, ou um imposto, ou seja o que for, o estado ou o governo regional aleija onde mais doi: na conta bancária. Vivo há 3 anos num sítio onde em vez de ir para longas bichas para comprar impressos, e outras tantas para os entregar, apenas faço uma chamada telefónica conserto dia e hora, e faço a minha declaração de impostos em 10 minutos. Onde o liceu onde estuda o meu filho me faz pagar apenas 100€ por livros e material escolar por todo o ano lectivo, e que desses 100€, o governo central comparticipa com 85€. É que os livros servem de um ano para o outro, e pertencem à escola. E com grande satisfação minha, esse liceu receberá o Premio Educação 2004, da Generalitat da Catalunya (o governo regional), dando assim um exemplo a toda a região, e quiçá ao resto do estado espanhol. Três anos ao fim dos quais, pude dar-me ao luxo de não trabalhar no mês de Agosto, e poder descansar, coisa que não me acontece há aproximadamente 20 anos. Lembro-me de tirar 3 semanas de férias em Dezembro de 1985, e outras 3 semanas em Janeiro de 1997.
Foram apenas 3 anos que passaram, mas foram 3 anos de àrdua luta, que finalmente começam a dar os seus frutos. Foi uma loucura, recomeçar tudo de novo quase com 40 anos. Ao passo que há 5 anos atrás, em Portugal, depois duma semi-ausência de 2 anos, fui obrigado a começar tudo de novo, como se nunca lá tivesse vivido e trabalhado durante pelo menos 20 anos. Começar de novo, por começar de novo, decidi começar de novo num sítio onde vale mais a pena. E efectivamente vale! Não é nenhum paraíso, nem esperava isso, apenas esperava poder viver uma vida normal, entre gente normal, num país normal. Muitas vezes tenho saudades da esquizofrenia colectiva do povo português, mas os custos são demasiado dolorosos.