segunda-feira, junho 06, 2005

O Quarto Poder

Na sexta-feira passada tive uma experiência curiosa. Todas as manhãs me levanto relativamente cedo, por volta das 7 da manhã, para acordar o meu rebento, dar-lhe pequeno-almoço e mandá-lo para a escola. A minha cara-metade tem o mau vício de acender a televisão, assim que acorda. A coisa não é tão má assim, porque o canal escolhido é a TV3, a televisão da Catalunha, um canal generalista, falado em catalão. Desde que vim para cá, das primeiras vezes, a TV3 constituiu para mim, uma fonte de aprendizagem do catalão, mas também se tornou, uma referência a nível europeu do que é um canal de televisão generalista de qualidade. Não é que seja sumamente extraordinário, mas as alternativas são tão más, que a TV3 sobressai por manter os "mínimos olímpicos" de qualidade.
A essa hora dá um programa que ocupa toda a franja horária da manhã, chamado "Els Matins de TV3" (As manhãs da TV3), programa que algumas vezes sigo, pois é um espaço de tertúlia, e de entrevistas bastante interessante, onde se tratam com alguma seriedade, temas da actualidade, seja ela local, nacional, europeia, ou mundial. Em suma, um espaço televisivo, onde, pasme-se, impera um certo bom-senso. Durante a semana passada, falou-se bastante sobre a violência, e mais precisamente a violência dos jovens, por causa de 2 acontecimentos nefastos, em 2 pontos diferentes da Catalunha, que levaram à morte de 2 jovens por esfaqueamento. Normalmente nesse programa põe-se uma pergunta aos espectadores, que podem responder através de telefone, sms ou email. Utilizei este último meio para dar a minha opinião sobre o assunto. A pergunta era "os jovens de hoje estão mais violentos do que antes?". Acto seguido recebi uma resposta ao email, pedindo um contacto telefonico, que obviamente facilitei. No dia seguinte, recebi uma chamada da TV3 para convidarem-me a participar no debate que haveria na sexta-feira, sobre o assunto. E, claro que concordei em ir, porque acredito que a participação neste tipo de iniciativas, pode inclusivamente ser um acto mais político do que votar. Votar é uma decisão mais ou menos influenciada, assistir a um debate pode fazer as pessoas pensar (o que hoje em dia é um perigo).
O debate correu lindamente, mas mais pela qualidade dos intervenientes, do que propriamente pela acção moderadora da jornalista, a quem ninguém fez o mais mínimo caso. E porquê? Porque a dita jornalista e co-apresentadora do programa, estava mais interessada em criar uma peixeirada para ter um acontecimento espectacular no seu programa, do que propriamente tratar de um tema verdadeiramente importante. E o mau-gosto foi maior, quando para o referido debate convidaram o pai de um rapaz morto à saida do liceu, aqui há quase 2 anos. Acabaram por se dizer coisas muito importantes por parte de todos os intervenientes, cujo leque era tão diversificado como psicólogos, professores, jovens estudantes, mães, pais, especialistas em comportamento e representantes de associações de okupas (malta que ocupa edifícios abandonados). Para desespero da jornalista (que não parava de fazer sinais a animar-nos à discussão), estávamos de acordo em practicamente todos os pontos discutidos.
Bom, tudo isto serviu-me para reflectir sobre variadas coisas. Uma delas é eu sentir-me cada vez melhor numa sociedade activamente pensante, e constructivamente crítica. A outra é sobre o papel dos media. E aqui começo a corroborar a designação de 4º poder, no sentido de que, como qualquer outro poder institucional, desenvolve-se unidireccionalmente, sem direito a resposta, e sem responsabilidade ou responsabilização. Já não é suficiente informar, tem que se informar com espectáculo, ainda que se toque a irresponsabilidade e o mau-gosto. Neste preciso contexto, não se dão conta de quanto mais se fala dos bandos deliquentes, mais estes cobram força, e notariedade. À saída do debate, conversando com um dos intervenientes, professor catedrático, este disse-me que os grupos de skinheads mantém um ranking de importância derivado das vezes que são referidos nos media. Será que os media não aprenderam a lição do que se passou em Los Angeles no princípio dos 90? Concordo que a brutalidade policial sobre Rodney King, devia ser denunciada, mas os custos da emissão das imagens do espancamento foi aquilo que se viu. Alguém se lembra, também no princípio dos 90, da imprensa portuguesa (há falta de material noticioso) ter inventado um problema nacional racista, e com isso quase que tínhamos um problema sério que não tínhamos até então? Os jornalistas, igual que os políticos, já não têm nenhum sentido de responsabilidade? Ou a que têm é para com os seus superiores?
Ninguém entende que há coisas na sociedade, que pela sua essência não podem ser mercantilizadas, ou (mais politicamente correcto) rentabilizadas, sob pena de serem uma negação em si mesmo, e por outro lado, uma ameaça à mesma sociedade? O jornalismo e a cultura são duas delas. O jornalismo pelo que acabo de contar, e a cultura, porque sem ela não há identidade, e sem identidade, não há verdadeiramente sociedade, há um conjunto de pessoas que vivem juntas, pela força das circunstâncias.
Continuo a ver "Els Matins de TV3", mas agora um pouco mais desiludido.

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