terça-feira, fevereiro 07, 2006

A Caricatura da Sociedade

     Tenho normalmente uma simpatia pelos dinamarqueses, e pelos nórdicos em geral, que apesar de serem um pouco toscos, são pessoas geralmente simpáticas e inteligentes, e com bastante sentido de humor. Mas nesta história das caricaturas, acho que a inteligência pouco os ajudou. Realmente a Sandra Feliciano deve ter razão, e ando um pouco desatento, pois só me dei conta da história ontem. Mas voltando à história. Parece que o exemplo da reacção do Islão ao livro “Versículos Satânicos” de Salman Rushdie, anda um pouco esbatido na memória do pessoal. E da maneira como andam as coisas pelo mundo islâmico (com ou sem razão, não é isso que se discute aqui), publicar as tais caricaturas, é decididamente “cutucar a onça com vara curta”, como dizem os brasileiros. Foi realmente uma estupidez provocar gratuitamente a ira de uma parte importante da população mundial, sobejamente conhecida por não ter muito sentido de humor no que toca a assuntos religiosos, entre outros. E digo isto com algum conhecimento de causa, pois vivo num bairro de maioria muçulmana, onde provavelmente me terei que confrontar com algumas das acções de protesto, além de ter dado aulas a muçulmanos, também.
Esta posta vem na sequência de ter recebido um email com um texto publicado no blog Combustões, na base do “Mata o Mouro!!!”(onde não há direito a comentários, o que pode ter várias leituras), e que me incomodou o suficiente para escrever estas linhas. Não conheço o autor do texto em causa, mas parece-me uma pessoa com um certo eruditismo, e algum conhecimento histórico. Pena é que desse conhecimento histórico, só se lembre das negras façanhas dos muçulmanos, e não das dos europeus, e recordando as grandes contribuições dos europeus à civilização mundial, se esqueça das do Islão. Mas se tem fraca memória, ou memória selectiva, recordo aqui que a finais do primeiro milénio, aurora do segundo, o califato de Córdoba, era o farol da civilização mais avançada da época, tanto em termos tecnológicos, como em termos artísticos, contrastando enormemente com a grunharia que era a Europa Cristã. Se não fossem os àrabes, ainda andávamos a fazer contas em numeração romana (que dá tanto jeito com catar pulgas com uma luva de boxe), e que sem os conhecimentos de navegação àrabes, os portugueses nem sequer tinham chegado às Berlengas. Que no sul da Península Ibérica as povoações têm ruas onde a largura se vai alterando, e com isso provoca diferentes pressões de ar, fazendo o ar circular. Além de terem plantado laranjeiras na via pública, que ao mesmo tempo que mata a sede e a fome aos mais desafortunados, perfumava as ruas num tempo em que o saneamento básico era desconhecido.
Quero deixar bem claro, que não estou a fazer a apologia do mundo islâmico, e do seu mondus vivendi et operandi, mas parafraseando a grande frase do filme Spiderman “Um grande poder, acarreta grande responsabilidade”, e há que saber realmente do que é que se está a falar. E parece-me a mim que os europeus, tal como Napoleão, nos coroámos imperadores da razão, e tão cegos estamos com a luz que irradia do nosso idílico e paradisíaco mundo, que com toda a soberba e arrogância, queremos julgar e obrigar civilizações diferentes à nossa, a pensar e agir da mesma maneira que nós. Afinal onde é que está o tal politicamente correcto? Onde está o tal respeito pela diferença que tanto apregoamos? Sim, são apenas umas vulgares caricaturas que nos fazem esboçar um sorriso.........PARA NÓS!!!! Se isso ofende outras pessoas, que se lixem?? É essa a postura de uma sociedade dita moderna, tolerante e progressista? Não me parece. Mas também eu sou um mero plebeu europeu, que se aproveita da dita liberdade de expressão, para dar a minha opinião que ninguém pediu. No entanto, tenho abertura suficiente para permitir aos outros que contestem essas opiniões, dando-lhes a possibilidade de comentar. Não privo ninguém do direito de resposta, com receio de ler aquilo que não me convém.
Uma pequena ressalva, ainda acerca do post do blog Combustões: como estudante que fui, e amante que sou da História, aprendi que é perfeitamente obtuso e absurdo descontextualizar os feitos do passado, e trazê-los para o presente, para assim julgá-los e servir de suporte a uma qualquer teoria que nos apeteça. No entanto, reconheço que deve fazer com que nos sintamos melhor connosco próprios.

5 comentários:

Anónimo disse...

Bem, a posta é grande, e com variantes pelo meio, espero que o meu comentário consiga ser minimamente objectivo.
É indiscutível o valor civilizacional que nos foi entregue pelos árabes. Se conhecemos os gregos, como Aristóteles entre outros, devemo-lo aos pensadores árabes, e estes também são de uma importância tremenda para nós. A Europa e o mundo ocidental não seria o que é hoje, sem dúvida.
Estranhamente, ou talvez não, com tanto conhecimento e valores civilizacionais, é o mundo árabe que fica preso numa "Idade Média", enquanto a Europa dispara em termos de desenvolvimento.
É interessante ler a perspectiva do outro lado na obra de Amin Malouf, com "As Cruzadas vistas pelos Árabes" fica-se com uma noção completamente diferente da tradicional.
Os árabes são tudo aquilo que criticas nos europeus, imperadores da razão, cegos, soberbos, arrogantes que querem obrigar o resto do mundo a pensar e agir como eles. Até entre eles não é possível conciliar razões e interesses, daí o "sucesso" de qualquer cruzada.
Todos os árabes? Não sei, imagino que sejam apenas os "senhores das guerras", religiosas, políticas ou económicas. Esses são o principal perigo, manipulam e torcem o que for necessário para atingir os seus fins.
A caricatura foi publicada há meses e só agora está a criar todo este sururu? Levou este tempo todo a chegar ao mundo árabe? As cruzadas e manipulações movidas pelos chefes religiosos/políticos demoram o seu tempo para obter resultados mais visíveis...
O jornal que faz aquela publicação também o faz com um objectivo, e nada gratuito. Concordo contigo na falta de tacto ao publicar a caricatura, mas devido à falta de respeito pela figura do profeta e do que ela significa para uma cultura, não pelo medo da reacção do mundo árabe. Seria de exigir que os muçulmanos tivessem o mesmo respeito pelo seu profeta em vez de andarem a cometer atrocidades em seu nome. Mas se passarmos a agir pelo medo estamos lixados, e não é pela questão da liberdade de pensamento e de expressão. Teremos de ter cuidado com todo o mundo, há chineses, indianos, americanos, africanos... tantos mundos diferentes do nosso (até há uns mais pequenitos por aí mas ninguém lhes liga...). Mas os árabes ainda são mais diferentes porque nos dão porrada e temos por isso de ter mais cuidado? Esperemos para ver o que a Ásia nos reserva, ou a América, ou África... (os pequenitos não fazem mal!).
A caricatura é de facto grave, mas não é a do papel, é a da forma de operar dos governos do mundo que se estão a borrifar para o cidadão comum, jogando os seus peões no tabuleiro dos vastos e diversos interesses. Ainda me pergunto como os cidadãos do mundo não se revoltam contra a dependência energética do petróleo, por exemplo. Essa sim é a questão que tem levado a tanto conflito com o mundo árabe, digo eu que não percebo nada disto!!
Olha, no fim disto tudo, levas mais um abraço!

A Burra Nas Couves disse...

Caro Rui. Subscrevo na íntegra o teu comentário, principalmente no capítulo acerca dos governos do mundo se estarem a borrifar para a arraia miúda, que como sempre é "carne para canhão". Apenas quero acrescentar que, sem tirar-te nem uma pinga de razão quando dizes que os muçulmanos (leia-se os líderes políticos ou religiosos, ou ambos) são tudo aquilo que critico nos europeus, apenas com a diferença de que não enganam ninguém acerca das suas intenções. Não vão pelo mundo dando uma imagem de reis do mambo, senhores da tolerância e do respeito pela diferença. Mostram aquilo que são, embora isso não nos agrade. Mas por muito que me desagrade, sei com o que posso contar da parte deles. Da parte dos ocidentais (leia-se os líderes políticos ou religiosos, ou ambos), apenas vejo lobos com peles de cordeiro, a tentar dar uma imagem absolutamente contrária aos seus actos. Ao nosso nível, constato diariamente que não somos tão diferentes, mas como diz o velho ditado "quando o mar bate na rocha........."

Anónimo disse...

Sim, de acordo. Poderemos chamar a isso a cínica cruzada da democracia. Fala-se à boca cheia de princípios que ninguém defende nem aceita nas altas instâncias, mas que se "vende" para civilizar o resto do mundo. De tal forma que nos países chamados democráticos cada vez menos pessoas acreditam no verdadeiro poder do voto, o tal que é comprado com o recurso à mais avançadas tecnologias do marketing e comunicação... votamos contentes, e penamos o tempo dos mandatos até à alegria do próximo momento eleitoral!
Dás o nome de esturro no outro comentário, mas andam aqui moscas a mais!

SDF disse...

Concordo a 100% com a "posta" e com os comentários. Andava a pensar postar sobre este assunto,mas depois do que li aqui, decidi não o fazer, pois seria redundante. Vou antes colocar um link para este post no cobre.

Laura Antunes disse...

Bem e com o que escreves, nada mais tenho a dizer. Brilhante post sobre um assunto bastante delicado. Beijo Laura